Que o nosso olhar não se acostume
às ausências
Em seu livro de
estreia, Waleska Barbosa, 43, autora paraibana radicada em Brasília há 19 anos,
faz um convite já no título: Que o nosso olhar não se acostume às ausências.
É uma proposta para que maiorias
ou grupos fora dos padrões normativos, que terminam tomados como minorias,
sejam enxergados em seu direito de existir e na sua diversidade. Com o mesmo
tema, ela compôs uma música em parceria com o violonista Adriano Rocha,
disponível no YouTube.
O livro teve pré-lançamento no
início de outubro, em Brasília, pouco antes da participação da autora na Feira
de Livro de Frankfurt, onde fez parte da programação, a convite do projeto Sara
e Sua Turma com o apoio institucional da Secretaria de Cultura do DF, da
Fundação Cultural Palmares e Câmara Brasileira do Livro.
Na Feira de Livro, ela falou no
International Stage ao lado de escritores brasileiros sobre o tema A Literatura
que vem da periferia. Em novembro, lançou a obra na Feira Literária de Campina
Grande, sua cidade natal, onde também ministrou uma oficina de escrita.
Fruto de edição independente, a obra
foi viabilizada por uma campanha de pré-venda conduzida pela autora, que bancou
a tiragem de 200 exemplares. As demais etapas foram presentes de amigos: o
projeto gráfico é do Coletivo 105 e a ilustração da capa, do artista plástico
Sérgio Abajur, paraibano que há onze anos mora na Alemanha, realizando
trabalhos para o teatro.
Com 234 páginas, ‘Que o nosso
olhar’ tem apresentação da escritora Leila de Souza Teixeira, a quem Waleska
conheceu em São Paulo, em cursos de literatura promovidos pelo Sesc, e prefácio
de Laura Castro, escritora baiana, editora de livros artesanais e professora
universitária.
Nos 74 textos – crônicas e prosas
poéticas – selecionados no acervo do blog
www.umpordiaw.com.br, ela (se)
expõe sobre questões como violência,
amor,
desamor,
maternidade
solo, genocídio
do povo negro, racismo,
feminicídio.
Expõe aspectos que permeiam a vida de mulheres da segunda idade, como se define,
e questiona padrões e jugos.
Como cronista nata, Waleska também
capta momentos pueris, do dia a dia, com uma forma poética e muito peculiar de
se colocar diante dos fatos, expressa pelo ritmo de sua escrita e pela maneira
de pontuar as frases. Também consegue ser dura e contundente ao apontar o que
chama de ‘involução’ do ser humano.
Falando por si ou (re)contando
histórias, ela descobriu que escrever era um caminho para o fim do
silenciamento e da (auto)censura impostos a ela e, historicamente às mulheres,
entre elas, às mulheres negras. A prática da escrita fez com que percebesse que
sua forma de interagir com o mundo estava mudando e que conseguia, finalmente, falar
com a boca, embora ainda precise de mais tempo para isso.
O fio condutor da obra parte da
identidade da autora como mulher negra, entendida e/ou reforçada, em função da
escrita diária no blog. “O livro tem gênero. É feminino. É feminista. É
mulher”, diz a orelha.
INFÂNCIA
A necessidade de escrever vem da
própria história. Filha caçula em uma família de 13 filhos, Waleska cresceu em
meio aos livros.
Nascida em 1976, foi educada em
um tempo em que à criança não eram dadas muitas escolhas e falar nem sempre era
uma prática bem-vinda.
“Por outro lado, meu pai era um
grande incentivador da cultura, da literatura e sempre me cobrava para ler e
escrever pois defendia que um não podia existir sem o outro”, diz.
“Eu lembro de ouvir muitas vezes
que era para calar a boca. Meus irmãos (sete homens e quatro mulheres) também
chegavam a responder a ideias minhas com adjetivos como “boba” ou “imbecil”.
Hoje entendi isso dentro de um contexto histórico. Por outro lado, percebi que
me deixou uma marca: silenciar. Fui levada a acreditar que minhas palavra e
opinião não eram importantes, a engolir sapos, a não verbalizar e, se
acontecesse, não fazê-lo em um tempo certo”.
Ela conta ainda que ter convivido
na família com muitos adultos que se destacavam em suas áreas de estudo ou
profissão também foi um problema. “Pensava não haver lugar para mim. Era como
se fosse uma competição na qual eu não me sentia no direito de entrar. Então ia
me fechando cada vez mais e, o pior, silenciando”, explica.
LUTO
Alguns processos pessoais como os
desafios impostos por ter uma filha de pele clara, a morte do irmão, em 2014, a
separação do companheiro, em 2015, e a vontade de descobrir o ‘tal propósito de
vida’, a levaram a se debruçar-se sobre si.
“Psicoterapia, psicanálise,
livros de autoajuda, leituras de tarô, constelação familiar, conversas com as
amigas, muitas fontes de autoconhecimento me fizeram entender que a história
era minha. Que eu teria que protagonizá-la independente de outras pessoas terem
feito isso. Não havia competição. Nem a figura do outro. Era pessoal”, conta.
De acordo com ela, por mais que
as coisas estivessem correndo bem, havia um desconforto. Uma lacuna na alma. “Eu
queria fazer algo além de trabalhar com comunicação social, já que sou
jornalista de formação, mas não me sentia apta, não sabia o quê. Só pedia aos
guias espirituais que não me deixassem morrer sem a resposta e sem conhecer o
tal brilho nos olhos de quem se realiza, ama o que faz e beneficia outras
pessoas com isso”, confessa.
Em 2017, de volta a Brasília
depois de uma temporada de onze meses na Paraíba, ela criou o blog com a ajuda
de um amigo, espaço na Internet onde escreveria diariamente. “Era como se fosse
para compensar o tempo perdido”, diz.
Mas serviu também para
aperfeiçoar sua escrita, entender seu estilo, testar formatos, errar, assumir
os erros, se expor, ir fundo em questões que doíam. “Alguns textos me fizeram
chorar, me causaram reações inesperadas e me exigiram longas pausas para tentar
arrumar coisas internas”.
TORNAR-SE NEGRA
Waleska diz que só
enxergou a cor da sua pele quando veio morar em Brasília e passar a deparar com
casos de racismo pelos quais passa diariamente. “Eu sou filha de um casal
interracial, Manoel e Maria, de destaque na sociedade por suas atividades
profissionais, mas que não tinha dinheiro como os outros que estavam lá.
Ela conta que estudou em escolas
particulares, fez cursos de línguas. “Mas no resto, nosso padrão não
acompanhava o dos colegas e eu terminava sendo a famosa “única negra” nos
lugares que frequentava. Meus irmãos todos passaram por isso, muitas vezes sem
perceber”.
Escrever no blog também reforçou
o seu engajamento em causas políticas e sociais. Foi quando conheceu movimentos
literários como o Leia Mulheres e o Mulherio das Letras e políticos, como a
Frente de Mulheres Negras do DF.
LEIA MULHERES NEGRAS
Resolveu intensificar a leitura –
de mulheres, de mulheres negras e de livros que abordam a história do Brasil
tendo como ponto de partida a escravização de africanos. “Acompanhar livros e entrevistas
de mulheres negras como Conceição Evaristo e Djamila Ribeiro seu falar
pulsante, suas reflexões, também me ajuda muito. Vou crescendo. Aprendendo.
Ampliando horizontes. Ajustando formas de pensar e de entender as coisas”,
conta. E há muitas outras que admira e lê, como Cristiane Sobral, Cidinha da
Silva e autoras de países da África.
Com esse caldeirão fervilhando e
ganhando mais ingredientes, Waleska já é convidada para saraus e eventos
literários. E quer se dedicar a ministrar cursos, palestras e oficinas, convidando
mulheres, em especial as negras, a escrever.
“Para conseguir falar com a boca
também, verbalizar, gritar e, ao fim, curar – dores ou máculas – muitas vezes
históricas e ancestrais, como os efeitos da escravização, do machismo, do
patriarcado e tantos padrões e comportamentos impostos às mulheres. Ao tirar
nossas questões de um espaço subjetivo e colocá-las no papel, é como se as
nomeássemos. Isso vai criando uma revolução interna. Uma autoterapia silenciosa
com muita potência para nos transformar.
É o que acontece comigo”, acredita.
Serviço:
O livro é vendido por R$39,90
pela autora.
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