Quando meu irmão Raniere morreu em um acidente de carro, toda a família foi chegando e se reunindo na casa dos meus pais, buscando retomar laços, impedir o que não tinha mais retorno – a ausência de um dos nossos. Além da dor, das lembranças, da companhia uns dos outros, partilhamos uma mesma dificuldade: dormir. Naqueles dias, houve uma profusão de remédios (parecia que todo mundo tinha um para oferecer), chegando em nossas mãos e sendo deglutidos com alguma esperança de que funcionassem. Mas não era bem o que ocorria.
Mesmo sob seus efeitos, não conseguíamos dormir sem interrupções e sobressaltos madrugada adentro. Mesmo com eles, eu acordava no meio da noite com uma pergunta súbita: isso aconteceu? E a resposta peremptória. Sim, aconteceu. Era comum que insones se reconhecessem e passassem a conversar por telefone oferecendo um colo virtual que se mostrou definitivo para que aprendêssemos a lidar com tantas sensações e tanta angústia. Eu vejo a incredulidade se repetir em mim diante da morte. Não de um irmão de sangue. Mas também. Não de um parente. Mas também. Não por um que faz parte da minha vida. Mas também.
Se não, quem seria Moïse Mugenyi Kabagambe, a pessoa morta que me faz acordar no meio da noite e me perguntar: isso aconteceu? E a resposta peremptória: Sim, aconteceu. Aos 24 anos e uma carinha daquelas que já antecipam a personalidade de seus donos, bonachões, divertidos, queridos, confiantes, cheios de vida pela frente. O homem negro. Irmão de sangue. Parente. Parte da minha vida. É revelado a mim quando não mais existe. Lembrando os encontros dos programas de entretenimento para juntar quem há anos não se via, o nosso encontro não foi possível apesar de sê-lo.
E quando eu pergunto se isso aconteceu, se sobrepõe o “como” aconteceu. Imigrante congolês, cuja família ainda consegue demonstrar respeito e cerimônia por um Brasil que o recebeu, criança ainda, e permitira até ali que vivesse. Até ali, naquele dia, no quiosque da Zona Oeste carioca. Aí, foi como se expirasse a falsa permissão. Foi como para lembrar que nunca aconteceu. Morando na periferia, atuando em trabalho informal, sobrevivendo como muitos, ausentes de nossas vistas e preocupações, ele gritou nossa consanguinidade com o silêncio dos mortos.
Assassinado para e por deleite de pessoas dispostas a matar. Mesmo que “não quisessem matar ninguém, não”, como disse um dos supostos participantes de um conluio de cinco. Armados de paus braços pés, abriram o cronômetro. Viraram a ampulheta. Quinze minutos. Quinze minutos em que deixaram livre a falta de humanidade, perdida há muito, a crueldade, o escárnio, o desprezo, a diversão sádica, para, gesto a gesto, grito a grito, golpe a golpe, chute a chute, murro a murro – trinta deles – ver se esvair diante de seus olhos e sob seu comando e prazer, um homem. Agonizante. Amarrado. Espetáculo registrado na película da câmera de segurança, essa nova arte de oferecer passatempo gratuito.
Talvez diante de muitos olhos nus. Para além dos dez que, cegos, gostavam do que viam. Morreu. Mataram. O jovem negro. Mais um. Irmão. Parente. Parte da minha vida. Seu rosto cuja vivacidade é memória, estampa protestos. Pedem-lhe justiça. Pedem justiça por ele. Tardiamente. Nunca houve justiça por Moïse. Nem para ele. É provável que não venha a ter – para além do seu rosto estampado. Do desespero de sua mãe. Dos gestos incontidos de seu primo. Dos passos sincronizados da comunidade de seu país em torno do seu corpo inerte. São muitos. Milhares. Parentes. Irmãos. Jovens negros. Homens pretos. Nascidos para morrer. Oitenta projéteis. Perdidas balas. Pé no pescoço. Sequestro. Sumiço. Sufoco. Mata-leão. Mata gente. Esse povo. Nascido para matar.
O Brasil, do alto do seu comando, distribui permissões. Vistos permanentes. Toda liberdade. A quem estiver disposto a não querer matar ninguém, não. Só demonstrar seu ódio, impune e liberado. Seu pendor atávico a um “estado” de coisas que não prevê respeito, tolerância, convivência. Apologia ao crime. Ao bandido morto. Ao preto-macaco-desumanizado que não faz falta, que não precisa e não merece viver. Atenção aos justiceiros merecedores do mundo livre dos intrusos, escravizados primeiro, imigrados depois. Eles cometem crimes de ódio. Pensam. Aqui. Ninguém. Ninguém é cidadão. Volto a acordar de madrugada. Já sei que aconteceu. Não importa mais dormir. É necessária vigília. Para impedir que se transforme em ausência, mais um dos nossos. Não penso apenas em meu irmão. Mas em meus irmãos.
Por Waleska Barbosa
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